Nosferatu,
O Vampiro Da Noite, De Werner Herzog. Expressionismo Falado.
O cineasta alemão
Werner Herzog é um dos grandes nomes do cinema, responsável por bons filmes
como “Aguirre, a Cólera dos Deuses” e “Fitzcarraldo”. Juntamente com o ator
Klaus Kinski, ele fez uma parceria de sucesso, cuja amizade passava às vezes
por sérias turbulências, como é visto no documentário de Herzog “Meu Melhor
Inimigo”, que fala do relacionamento entre os dois. Um grande exemplo do êxito
da dupla Herzog-Kinski é a versão realizada por eles do clássico do
expressionismo alemão “Nosferatu”, de Murnau. Enquanto que o clássico do cinema
foi realizado em 1922 e era mudo, a versão de Herzog-Kinski foi realizada no
ano de 1979, contando com as presenças de um jovial Bruno Ganz (que interpretou
Adolf Hitler em “A Queda – As Últimas Horas de Hitler”) e uma deslumbrante
Isabelle Adjani (o filme é uma co-produção alemã e francesa, com versões em
alemão e inglês). O Instituto Moreira Salles, lá na Gávea, exibiu a versão de
Herzog de “Nosferatu” e eu fui lá, à caça desse vampiro.
Herzog cravejou o filme
de pedras preciosas. Em seu início, sob uma música altamente soturna, vemos
todo um rosário de corpos mumificados. As imagens foram tomadas no Museu de
Guanajuato, México, e os corpos de faces aterrorizadas são de vítimas de uma
epidemia de cólera em 1833. São imagens muito impactantes que, alternadas com a
imagem de um enorme morcego voando em slow
motion, representavam, em todo seu desfile de horror, o pesadelo de Lucy
(interpretada por Isabelle Adjani) num presságio de toda a agonia que ela, seu
marido Jonathan (interpretado por Bruno Ganz) e toda a sua cidade passarão num
futuro bem próximo.
A fotografia da
película é de tirar o fôlego, sobretudo nos passeios à praia próxima à cidade
de Jonathan e Lucy, na viagem de Jonathan ao Castelo do Conde Drácula, nas
cenas da cidadezinha do casal, em desfiles de caixões cujas mortes foram
trazidas pelo vampiro na forma de uma praga. E ratos, muitos ratos (cerca de
onze mil)! Ainda bem que eles não cobraram cachê, caso contrário a produção
teria ido a falência (Infelizmente existem denúncias de que houve maus tratos
não somente aos ratos, mas também a outros animais que fizeram parte do filme,
sendo um destaque negativo para a produção). As imagens das pessoas cantando e
bebendo nas ruas, contaminadas pela peste, em meio a caixões, mesas fartas a
céu aberto e os ratinhos devorando tudo o que viam pela frente, inundando as
mesas cheias de sobras, foram soberbas e devem ter dado muito trabalho.
O filme deixa bem clara
a influência do “Nosferatu” original, de Murnau. Muitas cenas e sequências do
clássico mudo expressionista foram reproduzidas e adaptadas para o cinema
falado e em cores, usando as vantagens de uma tecnologia que não existia nos
anos 20. O próprio formato do cinema da época, em 16 quadros por segundo, que
tornava a imagem mais rápida, caricata e risível, prejudicava o gênero do
terror. Na versão de Herzog, colorida, falada e em 24 quadros por segundo, essa
sensação de desconforto desaparece. O estilo de interpretação expressionista,
altamente antinatural, com o propósito de expressar intensos estados emocionais
(paroxismo) é um tanto relativizado na versão de Herzog, com um estilo ainda
expressionista de interpretação, mas mais cadenciado, cabendo a Adjani as
interpretações de maior carga emocional. A maquiagem da atriz, com o rosto
muito branco, sombras negras sobre os olhos azuis e uma longa cabeleira negra,
é referência direta ao claro/escuro expressionista e uma cópia totalmente
intencional do ponto de vista estético da personagem Ellen, interpretada por
Greta Schröder na versão original de Murnau. Ganz, por sua vez, teve uma atuação
mais contemporânea e contida, embora as cenas em que o vampiro o atacava fossem
de um conteúdo altamente expressionista na atuação, com o ator se assemelhando
muito fisicamente ao ator Gustav von Wangenheim, da versão original de Murnau. E
Kinski? O homem foi simplesmente um show! Reprodução fiel de Max Schreck quanto
à estética, Kinski foi além com o vampiro, numa interpretação altamente contida
com falas soberbas (sua digressão sobre os sentimentos da prisão de uma vida
eterna e solitária nas trevas, onde nada acontece, vendo-se somente o tempo
passar em toda a sua eternidade é memorável!). E uma teatralidade poderosa! Seu
gestual ao atacar Jonathan é de grande expressividade e plasticidade, com
braços arqueados e unhas gigantescas realçando o desenho descrito pelos braços,
sendo uma herança expressionista direta. Ainda, e em contrapartida, a forma
como ele chupa o sangue do pescoço de Lucy, com uma leveza e suavidade muito
bem calculadas, é mais uma prova da homenagem ao expressionismo por Herzog em
sua versão (a antítese entre o violento e expressivo e o suave e o delicado). O
filme ainda tem outros elementos expressionistas interessantes. A viagem de
barco do vampiro com seus caixões adquiriu uma nova roupagem, com tomadas
aéreas do barco no mar, algo que não acontecia na versão de Murnau, onde
somente víamos praticamente as velas da embarcação, tornando, inclusive, a
imagem esteticamente muito opressora. Por outro lado, as virtudes da tecnologia
deram grande contribuição a um importante elemento expressionista: a sombra. Na
versão de Murnau, fica muito difícil colocar o vampiro carregando o caixão à
noite. Assim, vemos Max Schreck travestido de vampiro carregando seu caixão em
plena luz do dia sob um sol inclemente e com uma expressão engraçada no rosto,
hoje em dia soando a sequência antiga de forma mais cômica do que para botar
medo. Em Herzog, porém, a sequência pôde ser filmada à noite, com todos os
efeitos de claro/escuro que ele quisesse e grandes tomadas de sombras, onde
refletores estrategicamente colocados faziam com que a sombra do vampiro
crescesse ao tamanho de fachadas inteiras de prédios. Herzog também usa sombras
na sequência em que o vampiro ataca Lucy, se bem que agora não há mais a famosa
cena em que a sombra da mão do vampiro “pega” o seio da mocinha, dando à
personagem uma expressão de prazer cheia de paroxismo. Em Herzog, Lucy está
imóvel, passiva, atraindo o vampiro para os primeiros raios de sol do
amanhecer, e o monstro coloca a própria mão sobre o seio da sua vítima de forma
inteiramente não vulgar, dada a maestria da interpretação de Kinski. Aliás, a
morte do vampiro não foi como em Murnau. Se na versão muda o vampiro desaparece
numa fusão de imagem, na versão de Herzog Drácula agoniza, sofre e seu corpo
cai morto com olhos estatelados cobertos por lentes de contato brancas
retirando-lhes a pupila e a íris, o que acabou sendo uma morte muito mais
dramática e impactante visualmente.
Dessa forma,
“Nosferatu, O Vampiro Da Noite”, de Werner Herzog, é uma grande adaptação do
clássico de Murnau (não devemos nos esquecer da versão estrelada por Willen
Dafoe, mas isso fica para uma outra ocasião). Suas grandes virtudes residem no
fato de que há uma boa e intensa homenagem ao cinema expressionista alemão da
década de 20 e a tecnologia foi usada para aguçar ainda mais a linguagem
expressionista. Por se tratar de um gênero antigo com uma técnica
cinematográfica considerada ultrapassada, há sempre o medo de uma nova versão
se tornar apenas um decalque da original e ficar demasiadamente forçada e
piegas, mas não foi o que aconteceu aqui. Herzog destilou seu grande talento e
competência, produzindo uma homenagem à altura para o clássico de Murnau. Filme
para ver, ter e guardar.
Cartaz do filme
Um morcego aterrorizante
Corpos mumificados reais
Um vampiro entediado com a eternidade
É dura a vida de um corretor de imóveis
Ataque do vampiro a Jonathan. Homenagem ao expressionismo
Comparem com a cena da versão original...
Outra referência expressionista: claro/escuro na maquiagem
Buscou-se semelhança com a mocinha original...
Na versão de Herzog, mão no seio
Na versão de Murnau, a sombra da mão no seio
Antítese expressionista. Cena simultaneamente violenta e delicada
Um filme de bela fotografia
Procissões de caixões
Vampiro original...
... e na versão de Herzog. Grande semelhança!!!
Sombra como personagem expressionista na versão original...
Últimos momentos de prazer antes da morte pela praga...
... e muitos, muitos ratinhos!!!!
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