Jornada
Nas Estrelas. Radiografando Um Longa. O Filme (Segunda Parte).
Quais são as grandes
virtudes de “Jornada nas Estrelas, o Filme”? Em primeiro lugar, o filme se
aproxima de uma das propostas da série, que é a de fazer uma ficção científica intelectualizada.
Víamos alguns episódios que acompanhavam esse esquema. Era colocado um problema
inicial, que geralmente ameaçava a integridade da nave e da tripulação, e
quebrando muito a cabeça, nossos personagens buscavam a solução para sair
daquela enrascada que o desconhecido colocava à sua frente. Eu me lembro de um
episódio em que era encontrado um buraco no espaço e, ao entrar para
investigar, eles se depararam com um enorme ser vivo em formato de ameba
gigante, que sugava toda a energia à sua volta, inclusive da Enterprise. A partir
daí, a tripulação passava o resto do episódio procurando uma forma de sair dali.
Nesses momentos, a série se aproxima da ficção científica da melhor qualidade.
Ainda seguindo a linha
de ficção científica requintada, a insistência em Kirk de colocar a nave em
dobra, com o seu reator de dobra ainda defeituoso, enfiou a Enterprise num
buraco de minhoca (forte distorção espaço-temporal provocada por um intenso
campo gravitacional, ou no caso do filme, pelo reator de dobra em mau funcionamento),
onde a velocidade aumentava de forma descontrolada, criando uma violenta
distorção espaço-temporal que impossibilitava a reversão da dobra. Quanto maior
a velocidade, mais lentamente a tripulação se comportava. Por que isso? Na Teoria
da Relatividade Especial de Einstein, existe o chamado “paradoxo dos gêmeos”,
onde dois irmãos gêmeos (Ulisses e Homero) participam de uma experiência.
Ulisses fica sentadinho na sua cadeira no planeta Terra, enquanto que Homero
pega uma nave espacial e viaja a velocidade da luz. Para Homero, que viaja a
altíssima velocidade, o tempo passa mais lentamente, ao passo que, para
Ulisses, o tempo passa normalmente. Assim, quando Homero retorna à Terra, a
viagem para ele passou, digamos, poucos dias. E para Ulisses, que ficou
sentadinho aqui na Terra, a viagem durou muitos anos. Dessa forma, Homero ainda
está jovem e Ulisses está velhinho. Já que há esse paradoxo, como seria a visão
que Ulisses teria de Homero dentro da nave quando ela estivesse à velocidade da
luz? Ulisses veria Homero se mexendo muito lentamente. É o que vemos dentro da
Enterprise, quando ela está em altíssima velocidade num buraco de minhoca. Agora,
no filme esse paradoxo só ocorre quando o sistema de dobra está com defeito, é
claro! E adivinhe quem o conserta? Lógico, meu caro, é o Spock, que toma o
lugar de Decker como oficial de ciências sem que o já rebaixado personagem
reclame, ao contrário do que ele fez com Kirk. Como disse um dos produtores do
filme, “Jornada nas Estrelas sem Spock (e Nimoy) é a mesma coisa que um carro
sem rodas”.
Falando em Spock, é o
momento oportuno de falar de sua cena de choro na “versão do diretor” do longa.
A lágrima do Vulcano por V’Ger tem grande carga simbólica, pois é o
reconhecimento de seu dilema razão X emoção que aparecia na série clássica,
jamais confirmado por ele. Por ser meio humano, meio vulcano, reconhecer suas
emoções era visto como um sinal de fraqueza pelo oficial de ciências, que
sempre lançava mão de argumentos lógicos para dissimular suas manifestações
emocionais. Essa característica, aliada à sua retórica altamente refinada,
sincera e irônica tornaram, a meu ver, o personagem Spock um dos mais amados de
todos os tempos. É comovente ver o sentimento de compaixão de Spock por V’Ger,
exatamente pelo fato do vulcano se identificar com a máquina, cuja lógica e
raciocínio não são suficientes para completar sua essência. O vazio de emoções
e a falta de respostas a questões tão metafísicas como “O que eu faço no
mundo?”, ou “Qual é a razão de minha existência?” tornam a vida de V’Ger
incompleta e desalentadora e parece que Spock passa pelos mesmos dilemas, assim
como todos nós, que também buscamos respostas para essas perguntas e, volta e
meia, também passamos por momentos de instabilidade emocional.
A viagem solitária de
Spock num traje espacial com força de propulsão ao longo da nave de V’Ger é
curiosa, pois o vulcano encontrava todas as informações acumuladas pela nave ao
longo de sua viagem. Ao presenciar uma imagem de Ilia, que foi absorvida por
V’Ger e que enviou uma sonda em formato de Ilia para interagir com a tripulação
da Enterprise, Spock tenta fazer um elo mental. Mas a sobrecarga de informação
é tanta que ele fica inconsciente. Durante o elo mental, vemos o rosto em
agonia de Spock com várias imagens sobrepostas passando muito rapidamente por
sua face. A solução do filme está lá (quem é V’Ger). Se colocarmos o aparelho
de DVD quadro a quadro, vemos imagens da Voyager e das figuras humanas desenhadas
em seu disco de ouro preso à fuselagem da nave. Típica mensagem
subliminar.
Por fim, o primeiro
longa de “Jornada nas Estrelas” é altamente kubrickiano, tanto do ponto de
vista estético quanto do ponto de vista do enredo. Esteticamente, o interior da
nave de V’Ger se aproxima em alguns momentos do caleidoscópio da viagem warp de David Bowman ao se aproximar do
monólito. Do ponto de vista do enredo, assim como Bowman interage com a espécie
alienígena para criar um novo ser híbrido, a mesclagem final de Decker, Ilia e
V’Ger cria também um novo ser, onde essa fusão se manifesta de forma até mais
profunda do que em Kubrick, pois liga com total harmonia o racionalismo
exacerbado de V’Ger com a emoção e amor de Decker e Ilia.
Concluindo estas
linhas, volto a confirmar que “Jornada nas Estrelas, o Filme” é um longa a
altura de todo o carisma e sucesso dessa série que é um verdadeiro fenômeno
cultural, pois aliou ação, humor e entretenimento a um aguçado debate
intelectual. E tudo isso na TV e numa cultura de massa taxada de burra pela
escola de Frankfurt, composta de pensadores como Adorno e Walter Benjamin. Que
bom que toda regra tem sua exceção!
Wise, Rodenberry, Shatner, Kelley e Nimoy. Pérola de
bastidor.
Um elo mental que
revela inquietações.
Vulcano na versão
original de 1979.
Enterprise no buraco de
minhoca. Paradoxo dos gêmeos na materialidade das imagens.
McCoy dando uma bronca
em Kirk, após ele forçar a barra com a tripulação exigindo o sistema de dobra.
Fusão de Decker e Ilia
com V’Ger. Nova espécie, assim como em Kubrick.
Nave de V’Ger. Outra
manifestação kubrickiana.
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