Que
Horas Ela Volta? Rupturas E Continuidades Em Feridas Profundas De Nossa
Sociedade.
Nosso Cinema Brasileiro
com “B” maiúsculo produziu mais uma pérola. E quem diz isso é o Festival de
Sundance (prêmio de melhor atriz para Regina Casé) e o Festival de Berlim
(prêmio do público). Não é à toa que essa película tem grandes chances de ser o
filme brasileiro que vai tentar chegar à indicação ao Oscar de Melhor Filme
Estrangeiro. “Que Horas Ela Volta?” está muito bem visto no exterior, e agora
no Brasil, já que infelizmente o caminho do sucesso em nosso país vem pelas vias
inversas, isto é, o filme brasileiro tem que ser primeiro bem sucedido lá fora
para depois ter sucesso aqui. Além disso, a película tem outro grande mérito:
retoma o talento de Regina Casé como atriz, perdido nos “Esquentas” da vida e
em filme de comédia da Globo. Aqui temos outra produção da Globo, mas é outro
papo.
Vemos aqui a história
de Val (interpretada por Regina Casé), uma empregada doméstica nordestina de
uma família podre de rica de São Paulo. Val mora no emprego e é acometida de
uma síndrome que muitas empregadas domésticas do Brasil passam: ela é “de casa”,
desde que saiba de seu lugar, não tenha FGTS nem direitos trabalhistas, ou
seja, é tratada como uma cidadã de 2ª categoria, totalmente subserviente. Ela trata
o filho de sua patroa, Fabinho (interpretado na infância por Michel Joelsas) com
tamanha afetuosidade que ele parece ser seu filho. Aliás, é praticamente isso
mesmo, já que Bárbara, a patroa (interpretada por Karine Teles) sempre teve uma
vida profissional atribulada e seu filho praticamente foi criado pela
empregada. Tudo ia bem naquela mansão “coxinha” até que, um dia, Val recebe uma
ligação de sua filha Jéssica (interpretada por Camila Márdila), que diz que vai
a São Paulo tentar o vestibular e precisa de ajuda. Val, que não vê a filha há dez
anos, vai acomodar Jéssica na casa de seus patrões. E aí a coisa degringola,
pois Jéssica é uma menina estudada e quer fazer arquitetura numa das melhores
faculdades de São Paulo. Sua personalidade forte, independente e esclarecida
contrasta com a personalidade submissa de Val, despertando a curiosidade e
paixão do marido José Carlos (interpretado por Lourenço Mutarelli) e o ódio de
Bárbara, já que Jéssica não se comporta como uma empregada, como se ela não “soubesse
o seu lugar”. Acontece que Jéssica não era empregada de ninguém, mas sim sua
mãe Val. E aí vemos um conflito de classes sociais na mansão paulistana do
Morumbi.
Essa película de Anna
Muylaert tem a grande coragem de cutucar uma das mais profundas feridas de
nossa sociedade, que é a relação entre as empregadas domésticas e seus patrões.
Tal relação é uma das heranças mais vívidas do escravismo do Antigo Regime em
nosso povo. A relação entre patroa e empregada é altamente paternalista (“Val é
de casa!”) desde que a empregada saiba seu lugar, aceite a exploração econômica
das elites e abra mão de seus direitos trabalhistas e de seu patamar de
igualdade como cidadã numa sociedade pretensamente liberal e desenvolvida. Val está
imersa, juntamente com Bárbara, nas tradições do Antigo Regime escravista, muito
presentes em nossa sociedade. Já Jéssica representa a modernidade e a sociedade
liberal. Ela é tratada como igual pelo ricaço Zé Carlos, fortemente apaixonado
por ela, é uma moça que adora ler e estudar, não aceita subserviências impostas
pelas elites. Obviamente, o conflito entre mãe e filha tornar-se-á latente,
devido à diferentes visões de mundo. Mas o mais curioso é a dor que mãe e filha
sofreram com virtude de dez anos de afastamento, onde a tentativa de uma nova
vida no Sudeste foi a causa principal. A exploração colonial que levou ao
flagelo da seca no Nordeste, outro tema caro à época do Antigo Regime, foi o
fator que separou as duas por tanto tempo e essa separação só acabará com a união
das duas, tal como se essa união desse a elas uma perspectiva mais concreta de inserção
na sociedade liberal. A união das duas, que foram separadas por flagelos
ancestrais, irá romper com as tradições, onde a filha traz a modernidade e a
ruptura à mãe presa nos grilhões do passado.
Dessa forma “Que Horas
Ela Volta?” é um filme importantíssimo para a filmografia brasileira, pois ele
nos ajuda a entender um pouco mais de nós mesmos como uma nação que busca um
futuro, tensionando o fio entre a tradição e a modernidade, o autoritário e o
liberal, o Antigo Regime e o Capitalismo, o escravismo e a liberdade. Um filme
que desnuda contradições profundas de nossa sociedade e, por isso mesmo, deve
ter despertado tanta curiosidade no estrangeiro com relação a nós. A película
pode até não chegar ao Oscar, mas já fez muito, pois chegou ao fundo de nossas
almas como brasileiros. Uma história imperdível para ver, ter e guardar, que
nos ajuda a entender um pouco mais de nós mesmos.
Cartaz do filme
Val, presa aos grilhões do passado...
Amor maternal ao filho da patroa.
Bárbar, patroa que defende as tradições...
Um polêmico jogo de xícaras...
Jéssica e Val. Acertando as contas com o passado
Uma piscina polêmica...
Jéssica e José Carlos. Paixão de patrão...
Regina Casé e a diretora Anna Muylaert
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