Selma.
Desconstruindo Um Mito.
O ano de 2015 já tem
uma grande injustiça, que é o fato do filme “Selma” ter poucas indicações ao
Oscar (apenas filme e trilha sonora original), ganhando o globo de ouro por
melhor canção (“Glory”). Esse excelente filme dirigido por Ava DuVernay,
escrito por Paul Webb e que tem entre os produtores executivos Oprah Winfrey e
Brad Pitt, trata da marcha pelos
direitos civis e de voto para os negros nos Estados Unidos, orquestrada pelo
pastor Martin Luther King Jr., e devia ter mais atenção da Academia. Racismo?
Interesses comerciais? Esse não era o ano de “se premiar negros”? Difícil de
dizer.
O que pode ser dito
aqui é que “Selma” possui a óbvia virtude de denunciar o racismo e toda a sua
truculência, sobretudo nos Estados Unidos, onde manifestações pacíficas
terminavam em violentas pancadarias e até em mortes. Tudo isso porque a
população negra americana queria um direito assegurado por lei, que era o
direito de voto e, assim, escolher seus representantes no governo. Isso era
visto com reservas pelo presidente Lyndon Johnson (interpretado por Tom
Wilkinson) e com total repúdio pelo governador do Alabama, George Wallace
(interpretado por Tim Roth). A estratégia de Martin Luther King
Jr.(interpretado por David Oyelowo) era a mesma de Mahatma Gandhi, que
conseguiu libertar a Índia do jugo inglês com uma tática de desobediência civil
aplicada através de manifestações pacíficas. King organizou uma marcha de 80
quilômetros, indo da cidade de Selma até a cidade de Montgomery reivindicando o
direito de voto. A polícia reagia com muita violência, agredindo os
manifestantes negros com pauladas e até chicotadas. Isso provocou uma comoção
nacional, pois tal agressividade era veiculada pela mídia, tanto nos
telejornais da noite em horário nobre, quanto nos jornais de mídia impressa. E
King aproveitava essa comoção para convocar todos os que estavam indignados
(principalmente os religiosos) a participar da manifestação, o que trouxe
muitos brancos e fez os racistas do Alabama recuarem. Uma estratégia calculada
meticulosamente e que funcionou muito bem, já que até Lyndon Johnson recebeu
pressões de manifestações em plenos jardins da Casa Branca.
Os bastidores das
negociações entre King e a presidência são também explorados. Via-se uma preocupação
do alto escalão do governo em preservar a integridade física de King, já que
ele pregava uma solução pacífica, em detrimento de ativistas como Malcolm X,
que queriam uma solução mais violenta e até hostilizavam as posições de King. O
pastor recebia proteções do governo e era advertido sobre riscos de atentados. Por
outro lado, o filme mostrava que todas as ligações telefônicas de King eram
grampeadas e várias ligações anônimas eram feitas à sua casa, com o objetivo de
desestabilizar o relacionamento com sua esposa. Pegando esse gancho, a grande
virtude de “Selma” foi justamente humanizar o personagem de King. A boa
interpretação de Oyelowo mostrou um pastor reticente, que reluta em tomar
decisões e que é questionado por seus pares mais próximos, ou seja, uma figura
humana com suas fraquezas e inseguranças, ao contrário de mitos, que parecem
superiores, seguros de si e infalíveis. É, inclusive, insinuado que o pastor
teve casos extraconjugais, algo que não fez a esposa se separar dele, pois ela
sabia que existia uma estratégia deliberada de separá-los, como já foi dito
acima. Assim, a figura de Martin Luther King Jr. torna-se mais humanizada nesse
filme, o que nos ajuda a ter uma maior identificação com tão destacado
personagem.
Com uma película tão
cheia de virtudes, é realmente uma pena que ela não tenha sido contemplada com
muitas indicações. “Selma” é um filme que cumpre a função social do cinema, que
é denunciar e fazer pensar. Um filme que nos faz entender toda a turbulência da
questão racial nos Estados Unidos de hoje. Um filme que nos mostra como as
lutas entre brancos e negros têm um status
de guerra civil, motivadas historicamente pela guerra de secessão. É um tanto
inquietante ver uma quantidade enorme de bandeiras dos Estados Confederados do
Sul no filme, seja nas mãos dos brancos ultrarracistas, seja no gabinete do
governador Wallace. A permanência de tal símbolo em plena cultura americana do
século XX é a prova viva de que a questão racial tem raízes muito mais
profundas do que se pode imaginar e é um combate aberto e franco entre dois
grupos étnicos, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde um racismo latente é
maquiado pelo mito da democracia racial e pela miscigenação.
Querelas sociológicas
à parte, “Selma” é um excelente produto cinematográfico e deve ser visto pelos
amantes do bom cinema, a despeito do que os membros da Academia pensaram do
filme. Dê uma chegadinha ao cinema, indigne-se e emocione-se.
Cartaz do filme
Martin Luther King Jr. Ícone revisitado
A esposa, uma fiel escudeira
Manifestações sabiamente pacíficas
Encarando de frente a violência policial do sul americano.
Caminhada que reuniu até brancos...
...e representantes de outras religiões.
Debates tensos com Lyndon Johnson
Tim Roth como o governador Wallace
A diretora Ava DuVernay
Realidade e ficção. Mais um belo trabalho de caracterização.
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