Nostalgia
Da Luz. Memória, Presente, Passado, Vida E Morte.
Um excelente documentário
de 2010. “Nostalgia da Luz” tem como cenário o Deserto de Atacama, no Chile, um
local onde nenhum ser vivo tem como habitat
natural. É o sítio no planeta Terra que mais se assemelha à superfície de
Marte. Um local apenas de passagem, usado por várias civilizações no passado.
Patricio Guzmán vai abordar o Deserto do Atacama de hoje, que tem várias
presenças do ser humano. Os desertos costumam ter céus bem limpos, altamente
propícios para a observação astronômica. Por isso mesmo, vários países europeus
instalam telescópios e antenas no deserto para estudar os astros. Próximas aos
observatórios há várias pinturas rupestres comprovando a passagem de antigas
civilizações indígenas por lá. Logo, o deserto também é um sítio propício para
os arqueólogos que, volta e meia, encontram corpos indígenas mumificados de
séculos atrás. O clima desértico possibilitou a preservação desses corpos, de
forma que alguns estão praticamente intactos e são uma fonte valiosa de
pesquisas. Por outro lado, o deserto também tem marcas do horror, pois lá
funcionou um campo de concentração construído por ordens de Augusto Pinochet,
onde antes existiam os alojamentos dos trabalhadores de uma mineradora. A única
coisa que a ditadura chilena fez foi cercar o campo com arame farpado. O
Deserto também foi utilizado para sepultar perseguidos políticos mortos pela
ditadura em valas clandestinas. Com isso, é possível encontrar pequenos pedaços
de ossos de desaparecidos e seus parentes, em sua maioria senhoras já idosas,
vagam pelo deserto com pequenas pás em busca de qualquer vestígio de
desaparecidos políticos, na esperança de que algum pedaço de seus entes
queridos seja achado.
O documentário é
extremamente tocante, sobretudo no que concerne às buscas dos desaparecidos
políticos. É especialmente dolorosa a passagem de uma mulher que conseguiu
achar o pé do irmão no deserto. E mais dolorosa ainda a passagem de uma mulher
de 70 anos que ainda não achou qualquer vestígio de seu marido e quer seu corpo
inteiro, algo que nem se sabe se irá acontecer, pois o deserto é muito extenso
e ouviram-se boatos de que alguns corpos foram lançados ao mar para encobrir
esse terrível crime contra a humanidade que ocorreu na ditadura de Pinochet. Algumas
imagens de arquivo e em preto e branco da exumação de uma cova coletiva em 1990
são especialmente chocantes, pois as condições do deserto preservaram os corpos
e ainda podemos ver o semblante das vítimas na hora da morte. Uma moça ainda
estava de batom e com seu rosto, casaco e mãos intactas. Algo que parte o
coração. É especialmente terrível o caso de uma astrônoma chilena que foi salva
pelos avós, sob o preço de entregar os pais da moça. Se isso não fosse feito, a
menina, com pouco tempo de vida, também seria presa e sumiria. O casal de avós,
já bem idoso, somente estava lá diante da câmara, impassível, provavelmente com
um peso na consciência de ter sido obrigado a entregar os pais da menina para o
regime. A menina, por sua vez, disse que estudava astronomia para buscar um
significado ao seu sofrimento, pois ela com os ciclos de nascimento e morte das
estrelas, podia sentir como a matéria do Universo se reciclava e passou a
entender que tal coisa também havia ocorrido com seus pais. Há um registro de
que 30000 pessoas tenham sofrido alguma violência por parte do Estado na
ditadura chilena, enquanto estima-se que outras 30000 pessoas também tenham
sido barbarizadas pelo regime mas não denunciaram por vergonha ou medo.
O documentário também é
maravilhoso pela ideia de preservação da memória. Vemos aqui um grande paradoxo
no deserto. Enquanto os arqueólogos buscam vestígios de civilizações antigas
para reconstruir o Chile pré-colombiano, por outro lado, os desaparecidos
políticos foram enterrados lá para serem esquecidos. Uma parte podre da
história chilena que foi varrida para debaixo do tapete. É por isso que as
senhoras que buscam seus parentes no deserto dizem que se sentem como uma
espécie de “lepra” da sociedade, pois a história delas incomoda a muitas
pessoas. E a única forma delas não serem apagadas da já fraca memória chilena é
continuando a buscar vestígios de ossos no deserto.
Enquanto isso, os
astrônomos no alto dos morros observam o Universo e, assim, também investigam o
passado. Estrelas longínquas mostram em seus espectros linhas de absorção de cálcio,
o mesmo cálcio que está no corpo das pessoas e nos ossos das múmias indígenas
ou nos restos dos desaparecidos. Assim, astrônomos, arqueólogos e parentes de
desaparecidos estão todos, de certa forma e cada um a seu jeito, comprometidos
com o passado e a memória. Essa é a grande beleza desse documentário, que
podemos considerar uma verdadeira obra-prima.
Dessa forma, “Nostalgia
da Luz” é um programa imperdível e obrigatório. Um documentário, que usa um
terreno tão estéril como o deserto para relacionar temas ricos e aparentemente
díspares como a Astronomia, a Arqueologia, a História, a Política e a Memória,
deve ser aplaudido de pé. Uma reflexão de alto nível. Histórias e depoimentos
comoventes. Um grito de denúncia contra as injustiças. Uma joia do cinema tão
brilhante como as fotografias das joias que vemos no céu. “Nostalgia da Luz” é
para ver, ter, refletir e se emocionar.
Cartaz do filme
Um deserto morto, mas cheio de vida...
Céus límpidos atraem astrônomos de todo o mundo
Propiciando belas imagens do Universo e do passado...
Dolorosa busca por fragmentos de desaparecidos políticos.
De José, somente sobrou seu pé...
A jovem astrônoma só sobreviveu por uma difícil escolha dos avós...
Aulas de astronomia no campo de concentração...
Um sensacional trabalho de Patricio Guzmán
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