Corações
Livres. Trocando O Certo Pelo Duvidoso E Se Dando Mal.
O Cine Joia, em
Copacabana, lá escondidinho num shoppingzinho, tem passado algumas antigas
reapresentações que valem a pena. Uma produção de 2002 da Dinamarca, chamada
“Corações Livres” foi exibida nesse cineminha simpático trazendo ele, Mads
Mikkelsen, o grande ator dinamarquês, uma espécie de Ricardo Darín da
Jutlândia. Dirigido por Susanne Bier e com roteiro de Anders Thomas Jensen, faz
parte do movimento Dogma 95, da Dinamarca, criado por Lars von Trier e Thomas
Vinterberg, época em que o Cinema fazia cem anos e que tinha o objetivo de se
fazer um cinema menos comercial e mais realista, ou seja, resgatar o cinema
anterior a uma exploração industrial à la Hollywood, restringindo técnicas e
tecnologias. Uma série de regras tem que ser respeitada, como uso exclusivo de
locações em detrimento de cenografias, som e imagens produzidos não produzidos
separadamente, câmara na mão, proibição de truques fotográficos, filmes devem
abordar apenas a época atual, o nome do diretor não deve constar nos créditos,
etc. Os filmes devem ter um certificado do Dogma 95 atestando que as exigências
foram cumpridas. O movimento produziu filmes de baixo orçamento e de qualidade
técnica duvidosa para alguns, o que reforçava a importância do roteiro. Dentro
desse contexto, “Corações Livres” foi produzido.
A película conta a
história de um jovem casal, Cecille (interpretada por Sonja Richter) e Joachim
(interpretado por Nikolaj Lie Kaas), altamente feliz e com muitos planos para o
futuro, dentre eles o casamento. Mas um atropelamento sofrido por Joachim jogou
tudo por água abaixo, pois ele ficou tetraplégico. Quem o atropelou foi Marie
(interpretada por Paprika Steen), casada com o médico Niels (interpretado por
Mads Mikkelsen) que trabalhava no hospital onde Joachim estava internado.
Apesar de não ser culpada pelo acidente, Marie tinha esse sentimento em sua
mente, já que, na hora do atropelamento, tinha acelerado o carro por conta de
uma discussão com a filha adolescente no interior do automóvel. Assim, Marie
pedia a Niels para dar conforto e assistência a Cecille no hospital, que
recebia sucessivas patadas de Joachim que não queria mais a visita da moça. O
leitor já sabe o que aconteceu. Niels e Cecille se aproximam, tornando-se
amantes. Um triângulo amoroso com uma fragilidade e tanto entre as figuras
humanas lá presentes. Uma família que vai se desmantelar completamente. E
muitas, muitas incertezas, com um filme de desfecho completamente aberto.
As rígidas regras do
Dogma 95 (se não fossem rígidas, o manifesto não se chamaria assim) ajudaram um
pouco na dramaticidade da coisa. Houve uma boa sacação no roteiro. Em alguns
momentos, a imagem mostrava a situação que se passava na história, intercalada
por imagens que expressavam o desejo dos personagens. Como um exemplo, há uma
cena em que Cecille e Joachim estão no quarto do hospital. Para afastar Cecille,
Joachim já a despreza. Ele deitado na cama, olhando para o teto, fingindo que
Cecille nem está ali deitada na cama ao lado. Na imaginação de Cecille, eles
estão de mãos dadas, com um olhar terno um para o outro. Vale ressaltar que a
imagem que expressa o desejo de Cecille foi tomada num close, de forma
desfocada, granulada e sem iluminação específica, uma das intenções do Dogma
95, ao passo de que a imagem mostrando a situação real era produzida de forma mais
“comercial”, com mais qualidade, digamos assim.
A história é o clássico
caso de se trocar o certo pelo duvidoso, de seguir a emoção ao invés da razão.
Se Niels resolveu se arriscar, Cecille ainda tinha muito amor por Joachim.
Este, por sua vez, sabia que o relacionamento com a namorada era impossível. E
Marie ficou a ver navios com uma penca de filhos. Nenhum dos personagens teve
algum tipo de solução para seus problemas. Tudo permaneceu em aberto. Tudo
suspenso no ar, de forma frágil como um castelo de cartas... ou seja, mais um
filme de arte que imita a vida, provocando reflexões sobre a condição humana...
e a excelente presença de Mads Mikkelsen, acompanhado agora da excelente
Paprika Steen, que também trabalhou no primeiro filme do movimento Dogma 95,
“Festa de Família”. Tais curiosas experiências e atuações fazem o cinema
dinamarquês ser digno de atenção.
Cartaz do filme
Tetraplégico, Joachim rechaça Cecille
A jovem moça sofre
Mas ela encontrará consolo nos braços de Niels
Ele estará a sua disposição, mas...
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