Deus
E O Diabo Na Terra Do Sol. A Obra Prima de Glauber Rocha.
O filme “Deus e o Diabo
na Terra do Sol” (1964) pode ser considerado a obra prima de Glauber Rocha. E
por que podemos afirmar isso? Por que o filme se encontra a meio caminho
daquilo que podemos chamar de um cinema mais convencional, com um roteiro
estruturado que simplesmente conta uma história com um fio narrativo de fácil
compreensão (como Glauber havia feito em “Barravento”) e um cinema mais
experimental, que marcaria a carreira de Glauber posteriormente, tornando seus
filmes mais herméticos e de difícil entendimento. A grande marca de “Deus e o
Diabo na Terra do Sol” são as falas dos personagens, cheias de reflexões e
conflitos sobre as condições sociais de um Nordeste inóspito e violento e de
como eles, personagens, se enquadram ou deixam de se enquadrar nessas
condições.
A trama conta a
história do casal Manuel (interpretado por Geraldo Del Rey) e Rosa
(interpretada por uma jovem e lindíssima Yoná Magalhães). Eles vivem no seco e
miserável sertão nordestino, trabalhando numa terra estéril, vivendo de forma
extremamente precária. Manuel transportará umas cabeças de gado dele e do
coronel Morais (interpretado por Antônio Pinto) para a fazenda do
latifundiário. A intenção de Manuel é vender suas cabeças de gado ao coronel
para comprar um pedaço de terra. Mas algumas cabeças morrem de sede na viagem.
O coronel é taxativo e diz que as cabeças que morreram foram as de Manuel, que
precisava delas desesperadamente. Manuel questiona o coronel, que o trata com
truculência. O sertanejo, revoltado e desesperado, mata o coronel e seus
jagunços que haviam assassinado sua mãe. Temendo a perseguição dos poderosos, Manuel
e Rosa fogem e se integram ao grupo do beato Sebastião (interpretado por Lídio
Silva), uma espécie de alter ego de Antônio Conselheiro, em Monte Santo. O
discurso de Sebastião é sedutor. Ele diz que os pobres terão um futuro de
terras férteis e muita comida se eles se aproximarem de Deus e que os menos
favorecidos serão contemplados e protegidos por Deus contra os poderosos. Mas,
aos poucos, vemos que Sebastião é um fanático religioso extremamente
autoritário que aliena o povo, sendo Manuel uma de suas principais vítimas.
Quem não obedece as determinações do beato é tratado com violência, através de espancamentos
severos e pesadas penitências. Rosa quer tirar o marido daquele grupo de
religiosos, mas ele não lhe dá ouvidos. Sebastião diz que Rosa está possuída
pelo demônio e ela somente poderá ser purificada com o sangue de um inocente.
Sebastião sacrificará uma criança pequena para usar seu sangue para tirar os
pecados de Rosa. Manuel surta com a cena e Rosa, aproveitando-se de um descuido
de Sebastião, o mata a facadas.
Outro personagem do
filme é Antônio das Mortes (interpretado por Maurício do Valle), um matador de
aluguel, especializado em executar cangaceiros, mas que é contratado pelos
coronéis locais e pela Igreja para liquidar o grupo de Sebastião, pois seus
seguidores deixam de frequentar a Igreja católica e de trabalhar para os
coronéis (novamente a alusão a Canudos). Antônio das Mortes questiona tal
serviço, pois ouviu falar que Sebastião é um bom líder religioso e se preocupa
com o povo. Mas a oferta dos coronéis de trezentos contos de réis e da Igreja
de seiscentos contos de réis faz com que ele aceite a proposta. Ele executará
todos os fiéis numa cena que, reza a lenda, foi uma homenagem de Glauber à cena
da escadaria de Odessa, do filme “O Encouraçado Potemkim”, do russo Sergei
Eisenstein, onde o povo é massacrado por tropas do Czar. Antônio das Mortes
encontra Sebastião morto, Manuel e Rosa em estado de choque e conclui que o
próprio povo matou o beato, deixando-os para trás. Mais tarde, Manuel e Rosa
encontram o bando do cangaceiro Corisco (interpretado de forma magistral por
Othon Bastos) e Dadá (interpretada pela bela Sônia dos Humildes). Corisco aqui
é um cangaceiro visto de uma forma bem romântica, como o justiceiro do sertão
que quer libertar o povo da exploração do governo e dos poderosos. Com
monólogos muito intensos, Corisco lembra da aniquilação do bando de Lampião e
de como o governo oprime o povo. O heroísmo de Corisco só não é menor do que sua
violência gratuita, onde ele tortura e mata o filho de um coronel inimigo.
Manuel, já integrado ao bando de Corisco com o codinome Satanás, quer fazer justiça,
mas não suporta a violência gratuita de Corisco, atitude que faz o próprio cangaceiro
refletir sobre seu estilo de vida violento e de como ele se encontra
interiormente despedaçado por estar tão contaminado pela agressividade. Curioso
também é notar a aproximação entre Rosa e Dadá, numa leve insinuação ao homossexualismo,
tema carregado de pesados tabus há cinquenta anos. O envolvimento entre Rosa e
Corisco também é digno de atenção. Os monólogos e reflexões em ritmo lento serão
substituídos ao final da trama por um tiroteio entre Antônio das Mortes e
Corisco, onde reza a lenda que Glauber fez essa sequência inspirado nos westerns de John Ford. Ferido mortalmente
por Antônio das Mortes, Corisco dá seu último grito romântico: “Mais fortes são
os poderes do povo!”. Manuel e Rosa correm sem rumo pelo sertão que vira mar na
cena final de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
Esse filme é uma das
joias principais e carros chefes do cinema novo. Questão social e flagelo da
seca nordestina denunciados, a religião como fanatismo, bem ao estilo da
cartilha marxista, alusões a momentos da História do Brasil como a guerra de
Canudos e o movimento do cangaço, a belíssima trilha sonora que contém Villa
Lobos, dando um tom épico a uma tragédia social, mesclado com músicas num
estilo bem nordestino, especialmente compostas para o filme, que narram a
história, da mesma forma como foi visto no western
“Rancho Notorious”, de Fritz Lang. Só que aqui, as letras são compostas
pelo próprio Glauber e por Sérgio Ricardo.
Mas as pérolas
principais se chamam Corisco e Antônio das Mortes. Os monólogos de Corisco são algo
especial, embora o próprio Othon Bastos tenha achado que ficou uma merda. Os dilemas
do cangaceiro ao expressar suas altas doses de violência, o tom nostálgico sobre
a figura de Lampião, a visão de si mesmo como um defensor do povo contra o
monstro do sistema, tudo isso dito de forma firme, com um olhar penetrante em close do ator perante o espectador,
tornaram essa atuação de Othon Bastos algo antológico. Antônio das Mortes é um
personagem ainda mais interessante, pois é um matador a serviço do sistema que
questiona as mortes que lhes são encomendadas. Ele mata de forma impiedosa e é
atormentado pelas próprias mortes que provoca. Isso pode ser visto num filme de
Glauber feito exclusivamente para o personagem Antônio das Mortes, que foi “O Dragão
da Maldade Contra o Santo Guerreiro”. Ambos os personagens – Corisco e Antônio
das Mortes – são contraditórios. O cangaceiro luta contra as injustiças de
forma muito dura, mas se arrepende de uma certa forma de ter perdido sua
ternura. Já o matador é seduzido pelo dinheiro e pelo que ele tem que fazer,
que é matar, mas questiona as mortes que provoca. Essas são as duas joias
principais na coroa de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
Definitivamente, esse
filme é uma obra prima de Glauber, que ganhou vários prêmios: Prêmio da Crítica Mexicana no Festival de Acapulco, o Grande Prêmio do
Festival de Cinema Livre da Itália, a Náiade de Ouro do Festival Internacional
de Porreta Terme da Itália e o Grande Prêmio Latino Americano do Festival de
Mar del Plata, Argentina. O ator Maurício do Valle ganhou o Troféu Saci de
melhor ator coadjuvante. Referência obrigatória na videoteca de qualquer
cinéfilo...
Cartaz Antológico do Filme
Rosa e Manuel. Dois perdidos no flagelo da seca
Sebastião. Fanatismo religioso.
Penitências literalmente pesadas.
Manuel cada vez mais distante de Rosa.
Rosa como o Demônio!!!
Surge Corisco!!!!
Cangaceiro de olhar penetrante.
Antônio das Mortes. Maior personagem de Glauber.
Antônio das Mortes. Matador atormentado.
Dadá, interpretada pela bela Sônia dos Humildes.
Manuel. Conflito entre Deus e o Diabo.
Mais fortes são os poderes do povo!!!!
Glauber em ação!!!!
Grande cena! Scorsese e o poster do clássico de Glauber!!!
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