A
Idade Da Terra. Uma Porralouquice Com Lógica Interna.
Mais um filme de
Glauber. A película “A Idade da Terra” pode ser definida como altamente
experimental, dentro da linha de filmes mais herméticos do cineasta baiano. Por
não seguir uma linha narrativa mais tradicional, o filme descamba para uma
concepção altamente fragmentada, mais parecendo um delírio de porralouquices.
Mas há uma lógica interna presente, há algo a ser contado. E a genialidade do
diretor se manifesta no elenco que trabalhou com ele, uma verdadeira
constelação de estrelas brasileiras. Vejamos: Tarcísio Meira, Antônio Pitanga
(um “habitué” dos filmes de Glauber), Maurício do Valle (idem), Danuza Leão,
Jece Valadão, Geraldo del Rey, Norma Bengell.
O primeiro elemento
identificado no filme é o caleidoscópio de signos culturais e sociais brasileiros.
Vemos no início da exibição um longuíssimo plano de um pôr-do-sol em tempo
real, seguido pela cultura considerada a mais ancestral de todas de nosso país:
a indígena. Apesar de presenciarmos brancos (até louros!) fazendo papel de
índios, a ideia está lá, onde planos curtíssimos são alternados com planos de
média duração, destacando-se aí o trabalho da montagem, que aumenta a
dramaticidade dos rituais, num ritmo frenético. Jece Valadão é o paradigma do
herói nacional, circulando por todas as celebrações indígenas, que têm Bengell
como uma espécie de Vênus tupiniquim.
Em seguida, uma visão
aterrorizante de um Maurício do Valle espraguejando ameaças contra o Brasil.
Sua longa cabeleira loura e seu sotaque carregado o associam a um imperialismo
americano demonizado. Sua área de atuação é a moderna Brasília, onde ele
implantará suas garras, se maravilhará com as riquezas brasileiras, vai querer
comer o cu do povo. Aqui vemos os experimentalismos de Glauber, pois foi feita
uma filmagem com peões de obra, onde Maurício do Valle interage com eles,
dando-lhes beijos na testa e até chamando um de gay.
Outro elemento da
cultura brasileira é o samba. O pano de fundo dessa vez é um desfile de escola
de samba na Marquês de Sapucaí, onde o imperialista americano Maurício do Valle
se esbalda e um Tarcísio Meira banqueiro de jogo do bicho se maravilha com a
realização de sua obra, que é a escola de samba, manifestação de seu poder.
O litoral e as culturas
africanas, o candomblé, também aparecem. Uma espécie de pai de santo “batiza”
as pessoas na água do mar, ao som de músicas católicas, num retrato do
sincretismo religioso no Brasil. O pai de santo entrega ao herói nacional Jece
Valadão as armas para a luta contra os inimigos: flechas e um cocar. Uma figura
meio que folclórica, com um chapéu napoleônico multicolorido, assobia a
“Marselhesa” e é chamada de “Satanás!” por nosso herói Jece, que se
aterrorizava de medo. A figura apocalíptica, símbolo do colonialismo europeu,
dizia aos gritos para Jece que o nosso herói era extremamente perigoso e que
havia sido mandado para matar o tupiniquim. Mas que não queria matá-lo, e sim
que o brasileiro o obedecesse, o apoiasse, o respeitasse, numa mostra do embate
da cultura brasileira contra o domínio estrangeiro.
Um momento mais “pé no
chão” do filme, é a entrevista que Pitanga toma do jornalista Carlos Castelo
Branco. O consagrado colunista político faz uma análise do golpe de 1964 e de
como os generais presidentes se posicionaram com relação a política de
alinhamento com os Estados Unidos na Guerra Fria, citando, por exemplo que
Costa e Silva não tinha uma visão de alinhamento incondicional aos americanos,
impondo até alguma resistência. Aqui vemos o Brasil civilizado,
intelectualizado, cuja sala suntuosa onde se faz a entrevista é cheia de
quadros alusivos à cultura nacional. Mas o barulho excessivo das pedras de gelo
nos copo de uísque é altamente inquietante, onde sentimos arremedos de
estrangeirismos nessa “civilização brasileira”.
Outros elementos da
cultura nacional aparecem, como a Igreja Católica, representada de forma
pomposa por bailarinas vestidas de freiras que dançam com muita leveza ou o
futebol, onde Maurício do Valle simula narrações de jogos de futebol em plena
rampa do Maracanã.
Vemos, então, como “A
Idade da Terra” tem características altamente heterogêneas. Em primeiro lugar,
o alto experimentalismo, seja no encontro de Maurício do Valle com os peões,
seja na tomada de uma crise de pressão alta de Maurício do Valle, durante as
filmagens, inserida no filme. Declamações altamente cheias de paroxismo também dão
a tônica da trama, onde ideias de cunho político-social são às vezes
exaustivamente repetidas para impregnar o espectador de conceitos críticos
sobre a situação brasileira. Essas explosões de paroxismo, associadas aos
efeitos de edição e montagem, com alternância de planos curtos e longos que dão
um ritmo frenético e inquieto, trazem um quê expressionista ao filme. Movimentos
delirantes de câmara também auxiliam nessa impressão, principalmente na
sequência onde Tarcísio Meira, à beira de uma Baía de Guanabara poluída, grita
desesperadamente sobre a nossa condição nacional de “cloaca do Universo” e de “estruturas
destruídas” de forma altamente repetitiva.
Desse jeito, “A Idade
da Terra” é mais um filme de Glauber Rocha que não nos deixa indiferentes. O que
parece uma película totalmente tresloucada mostra em seu íntimo um embate entre
o nacional e o estrangeiro, além de um mapeamento sobre os elementos culturais
de nosso país. Mas a trama não faz isso apenas inspirada numa cartilha
marxista, como ocorre em muitos filmes de Glauber, já que a aplicação prática
do socialismo é questionada em algumas falas e o não alinhamento dos generais
mais sanguinários da ditadura militar brasileira aos Estados Unidos é citado. Numa
época de altas polarizações políticas entre esquerda e direita, relativizar
tais discussões parece uma atitude de grande coragem, digna do vulcão que foi
Glauber Rocha.
Cartaz do Filme
Maurício do Valle e Antônio Pitanga: "habitués" de Glauber
Tarcísio Meira. Paroxismos
Experimentalismos exóticos
Jece Valadão. Herói tupiniquim
Norma Bengell. Uma Vênus Tupiniquim
Um pôr do sol em tempo real
Porra louca genial...
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