segunda-feira, 2 de março de 2015

Resenha de Filme - Até Que A Sbórnia Nos Separe

Até Que A Sbórnia Nos Separe. Um Real País Fictício.
Lembram de uma dupla musical gaúcha altamente performática conhecida pela peça “Tangos e Tragédias”, lá em idos das décadas de 1980, 1990? Pois é, eles conseguiram fazer uma animação (antes tarde do que nunca) usando sua inspiração principal: o fictício país Sbórnia, uma ilhota com cara de leste europeu, ligada ao nosso continente por um fino istmo. Mas uma erupção vulcânica separou o pequeno país da América do Sul e, desde então, a ilha vaga sem rumo pelos oceanos do mundo, sendo esporadicamente vista por um ou outro navio aqui ou ali. A animação, muito bem feita por sinal, conta com as vozes do Tangos e Tragédias (Hique Gomez e Nico Nicolaiewsky, recentemente falecido) e figuras como André Abujamra (que, obviamente, também fez a música do filme junto com a dupla gaúcha), Arlete Salles e Fernanda Takai, a vocalista do grupo Pato Fu.
A grande sacação do filme é que o fictício país Sbórnia não é tão fictício assim. Ele era protegido do continente por um muro formado de tijolos feitos de cocô. Mas num jogo de futebol com machados, uma bola lançada para fora do estádio foi direta ao muro e o destruiu, criando um contato com o continente. Isso vai provocar o encontro de duas culturas, uma bem prosaica, que tem o hábito de se cumprimentar com lambidas e cuspes, e outra bem refinada. A alusão Brasil Subdesenvolvido – Mundo Desenvolvido é imediata. Mas o subdesenvolvimento também tem seus sabores. Uma bebida que deixava todo mundo ligado (uma alusão a gauchíssima erva-mate do chimarrão) foi descoberta por um grande empresário do continente, que vai transformar a bebida num refrigerante produzido em escala industrial. O sucesso de vendas foi tão grande que todo o estoque da bebida se esgotou em pouco tempo. Mas foi descoberta uma camada subterrânea de bebida, sugestivamente abaixo de uma camada de pré-sal, que passou a ser sugada pela grande fábrica. Como a bebida era muito volátil, a sua extração motivou a erupção vulcânica que separou a ilha do continente.

O filme é uma inteligente e divertida alusão à posição periférica do Brasil no mundo, onde a nossa cultura tupiniquim é vista pelo mundo desenvolvido em posição de inferioridade (os casos de falta de educação à mesa e os cumprimentos recheados de secreções), mas também um estranhamento mútuo entre o subdesenvolvido “tradicional” e o desenvolvido “moderno”. Há o caso das mocinhas do continente que chegam à praia da Sbórnia usando trajes sumários e dançando rock, o que assusta os sbornianos mais tradicionais, assim como a instalação de lojas cheias de roupas modernas para mulheres em plena Sbórnia que, apaixonadas pela nova moda, passaram a se vestir de acordo com as novas tendências e a maquiar o rosto, desvencilhando-se da sua forma tradicional de se vestir, onde todas ficavam cobertas. O embate tradição X modernidade acaba, inclusive, provocando implosões familiares. Logo, a interferência do capital estrangeiro, com a fábrica de refrigerante, e a imposição de hábitos vindos de fora acabaram provocando a destruição total de Sbórnia, tornando-o um país totalmente arrasado, vagando sem rumo e sem identidade pelo mundo. Uma nação de refugiados, como os muitos campos de refugiados que vemos pelo mundo afora, expatriados como os palestinos, um exemplo talvez ainda mais cristalino de Sbórnia, que nunca mais recuperou o seu território. A perda, por parte de Sbórnia, de sua identidade - e o inevitável que sua recuperação ocorra - se manifesta da forma mais dolorosa quando a mocinha do filme é vista idosa, vagando próxima ao lixão em que se transformou o vulcão. Se a tragédia é satirizada pelas crises amorosas de um dos integrantes do “Tangos e Tragédias”, essa tragédia final do filme – a destruição total de Sbórnia e o fato de que o país jamais se recuperará – é muito séria e nos serve de alerta, pois o Brasil pode sofrer (ou já sofre) hecatombe semelhante ou, dizendo em outras palavras, a zona e a desorganização de nosso país escondem a semente da destruição, tornando o Brasil uma “esbórnia”. Por essa reflexão, a animação tem um grande mérito e merece ser vista por muitas pessoas. E pensar que ela estava em apenas uma sala e um horário na cidade inteira. Adentrei a sala e só havia uma senhora assistindo. Com dez minutos de filme, ela caiu fora. Realmente vivemos numa esbórnia. Só tocando um tango argentino para lamentar toda essa tragédia.

 Cartaz do filme


Uma exótica dupla musical


Uma linda mocinha


Mulheres da Sbórnia todas cobertas (tradição)


Mulheres do continente (modernidade)


O grupo Tangos e Tragédias (Nico Nicolaievsky, recentemente falecido, à esquerda)




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