segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Resenha de Filme - Que Horas Ela Volta?

Que Horas Ela Volta? Rupturas E Continuidades Em Feridas Profundas De Nossa Sociedade.
Nosso Cinema Brasileiro com “B” maiúsculo produziu mais uma pérola. E quem diz isso é o Festival de Sundance (prêmio de melhor atriz para Regina Casé) e o Festival de Berlim (prêmio do público). Não é à toa que essa película tem grandes chances de ser o filme brasileiro que vai tentar chegar à indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “Que Horas Ela Volta?” está muito bem visto no exterior, e agora no Brasil, já que infelizmente o caminho do sucesso em nosso país vem pelas vias inversas, isto é, o filme brasileiro tem que ser primeiro bem sucedido lá fora para depois ter sucesso aqui. Além disso, a película tem outro grande mérito: retoma o talento de Regina Casé como atriz, perdido nos “Esquentas” da vida e em filme de comédia da Globo. Aqui temos outra produção da Globo, mas é outro papo.
Vemos aqui a história de Val (interpretada por Regina Casé), uma empregada doméstica nordestina de uma família podre de rica de São Paulo. Val mora no emprego e é acometida de uma síndrome que muitas empregadas domésticas do Brasil passam: ela é “de casa”, desde que saiba de seu lugar, não tenha FGTS nem direitos trabalhistas, ou seja, é tratada como uma cidadã de 2ª categoria, totalmente subserviente. Ela trata o filho de sua patroa, Fabinho (interpretado na infância por Michel Joelsas) com tamanha afetuosidade que ele parece ser seu filho. Aliás, é praticamente isso mesmo, já que Bárbara, a patroa (interpretada por Karine Teles) sempre teve uma vida profissional atribulada e seu filho praticamente foi criado pela empregada. Tudo ia bem naquela mansão “coxinha” até que, um dia, Val recebe uma ligação de sua filha Jéssica (interpretada por Camila Márdila), que diz que vai a São Paulo tentar o vestibular e precisa de ajuda. Val, que não vê a filha há dez anos, vai acomodar Jéssica na casa de seus patrões. E aí a coisa degringola, pois Jéssica é uma menina estudada e quer fazer arquitetura numa das melhores faculdades de São Paulo. Sua personalidade forte, independente e esclarecida contrasta com a personalidade submissa de Val, despertando a curiosidade e paixão do marido José Carlos (interpretado por Lourenço Mutarelli) e o ódio de Bárbara, já que Jéssica não se comporta como uma empregada, como se ela não “soubesse o seu lugar”. Acontece que Jéssica não era empregada de ninguém, mas sim sua mãe Val. E aí vemos um conflito de classes sociais na mansão paulistana do Morumbi.
Essa película de Anna Muylaert tem a grande coragem de cutucar uma das mais profundas feridas de nossa sociedade, que é a relação entre as empregadas domésticas e seus patrões. Tal relação é uma das heranças mais vívidas do escravismo do Antigo Regime em nosso povo. A relação entre patroa e empregada é altamente paternalista (“Val é de casa!”) desde que a empregada saiba seu lugar, aceite a exploração econômica das elites e abra mão de seus direitos trabalhistas e de seu patamar de igualdade como cidadã numa sociedade pretensamente liberal e desenvolvida. Val está imersa, juntamente com Bárbara, nas tradições do Antigo Regime escravista, muito presentes em nossa sociedade. Já Jéssica representa a modernidade e a sociedade liberal. Ela é tratada como igual pelo ricaço Zé Carlos, fortemente apaixonado por ela, é uma moça que adora ler e estudar, não aceita subserviências impostas pelas elites. Obviamente, o conflito entre mãe e filha tornar-se-á latente, devido à diferentes visões de mundo. Mas o mais curioso é a dor que mãe e filha sofreram com virtude de dez anos de afastamento, onde a tentativa de uma nova vida no Sudeste foi a causa principal. A exploração colonial que levou ao flagelo da seca no Nordeste, outro tema caro à época do Antigo Regime, foi o fator que separou as duas por tanto tempo e essa separação só acabará com a união das duas, tal como se essa união desse a elas uma perspectiva mais concreta de inserção na sociedade liberal. A união das duas, que foram separadas por flagelos ancestrais, irá romper com as tradições, onde a filha traz a modernidade e a ruptura à mãe presa nos grilhões do passado.

Dessa forma “Que Horas Ela Volta?” é um filme importantíssimo para a filmografia brasileira, pois ele nos ajuda a entender um pouco mais de nós mesmos como uma nação que busca um futuro, tensionando o fio entre a tradição e a modernidade, o autoritário e o liberal, o Antigo Regime e o Capitalismo, o escravismo e a liberdade. Um filme que desnuda contradições profundas de nossa sociedade e, por isso mesmo, deve ter despertado tanta curiosidade no estrangeiro com relação a nós. A película pode até não chegar ao Oscar, mas já fez muito, pois chegou ao fundo de nossas almas como brasileiros. Uma história imperdível para ver, ter e guardar, que nos ajuda a entender um pouco mais de nós mesmos.

Cartaz do filme

Val, presa aos grilhões do passado...

Amor maternal ao filho da patroa.

Que Horas Ela Volta? : Foto
Bárbar, patroa que defende as tradições...

Um polêmico jogo de xícaras...

Que Horas Ela Volta? : Foto Camila Márdila, Regina Casé
Jéssica e Val. Acertando as contas com o passado

Que Horas Ela Volta? : Foto Camila Márdila
Uma piscina polêmica...

Que Horas Ela Volta? : Foto
Jéssica e José Carlos. Paixão de patrão...

Que Horas Ela Volta? : Foto
Regina Casé e a diretora Anna Muylaert


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