terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Resenha de Filme - Selma

Selma. Desconstruindo Um Mito.
O ano de 2015 já tem uma grande injustiça, que é o fato do filme “Selma” ter poucas indicações ao Oscar (apenas filme e trilha sonora original), ganhando o globo de ouro por melhor canção (“Glory”). Esse excelente filme dirigido por Ava DuVernay, escrito por Paul Webb e que tem entre os produtores executivos Oprah Winfrey e Brad Pitt,  trata da marcha pelos direitos civis e de voto para os negros nos Estados Unidos, orquestrada pelo pastor Martin Luther King Jr., e devia ter mais atenção da Academia. Racismo? Interesses comerciais? Esse não era o ano de “se premiar negros”? Difícil de dizer.
O que pode ser dito aqui é que “Selma” possui a óbvia virtude de denunciar o racismo e toda a sua truculência, sobretudo nos Estados Unidos, onde manifestações pacíficas terminavam em violentas pancadarias e até em mortes. Tudo isso porque a população negra americana queria um direito assegurado por lei, que era o direito de voto e, assim, escolher seus representantes no governo. Isso era visto com reservas pelo presidente Lyndon Johnson (interpretado por Tom Wilkinson) e com total repúdio pelo governador do Alabama, George Wallace (interpretado por Tim Roth). A estratégia de Martin Luther King Jr.(interpretado por David Oyelowo) era a mesma de Mahatma Gandhi, que conseguiu libertar a Índia do jugo inglês com uma tática de desobediência civil aplicada através de manifestações pacíficas. King organizou uma marcha de 80 quilômetros, indo da cidade de Selma até a cidade de Montgomery reivindicando o direito de voto. A polícia reagia com muita violência, agredindo os manifestantes negros com pauladas e até chicotadas. Isso provocou uma comoção nacional, pois tal agressividade era veiculada pela mídia, tanto nos telejornais da noite em horário nobre, quanto nos jornais de mídia impressa. E King aproveitava essa comoção para convocar todos os que estavam indignados (principalmente os religiosos) a participar da manifestação, o que trouxe muitos brancos e fez os racistas do Alabama recuarem. Uma estratégia calculada meticulosamente e que funcionou muito bem, já que até Lyndon Johnson recebeu pressões de manifestações em plenos jardins da Casa Branca.
Os bastidores das negociações entre King e a presidência são também explorados. Via-se uma preocupação do alto escalão do governo em preservar a integridade física de King, já que ele pregava uma solução pacífica, em detrimento de ativistas como Malcolm X, que queriam uma solução mais violenta e até hostilizavam as posições de King. O pastor recebia proteções do governo e era advertido sobre riscos de atentados. Por outro lado, o filme mostrava que todas as ligações telefônicas de King eram grampeadas e várias ligações anônimas eram feitas à sua casa, com o objetivo de desestabilizar o relacionamento com sua esposa. Pegando esse gancho, a grande virtude de “Selma” foi justamente humanizar o personagem de King. A boa interpretação de Oyelowo mostrou um pastor reticente, que reluta em tomar decisões e que é questionado por seus pares mais próximos, ou seja, uma figura humana com suas fraquezas e inseguranças, ao contrário de mitos, que parecem superiores, seguros de si e infalíveis. É, inclusive, insinuado que o pastor teve casos extraconjugais, algo que não fez a esposa se separar dele, pois ela sabia que existia uma estratégia deliberada de separá-los, como já foi dito acima. Assim, a figura de Martin Luther King Jr. torna-se mais humanizada nesse filme, o que nos ajuda a ter uma maior identificação com tão destacado personagem.
Com uma película tão cheia de virtudes, é realmente uma pena que ela não tenha sido contemplada com muitas indicações. “Selma” é um filme que cumpre a função social do cinema, que é denunciar e fazer pensar. Um filme que nos faz entender toda a turbulência da questão racial nos Estados Unidos de hoje. Um filme que nos mostra como as lutas entre brancos e negros têm um status de guerra civil, motivadas historicamente pela guerra de secessão. É um tanto inquietante ver uma quantidade enorme de bandeiras dos Estados Confederados do Sul no filme, seja nas mãos dos brancos ultrarracistas, seja no gabinete do governador Wallace. A permanência de tal símbolo em plena cultura americana do século XX é a prova viva de que a questão racial tem raízes muito mais profundas do que se pode imaginar e é um combate aberto e franco entre dois grupos étnicos, ao contrário do que ocorre no Brasil, onde um racismo latente é maquiado pelo mito da democracia racial e pela miscigenação.
Querelas sociológicas à parte, “Selma” é um excelente produto cinematográfico e deve ser visto pelos amantes do bom cinema, a despeito do que os membros da Academia pensaram do filme. Dê uma chegadinha ao cinema, indigne-se e emocione-se.


Cartaz do filme


Martin Luther King Jr. Ícone revisitado


A esposa, uma fiel escudeira


Manifestações sabiamente pacíficas


Encarando de frente a violência policial do sul americano.


Caminhada que reuniu até brancos...


...e representantes de outras religiões.


Debates tensos com Lyndon Johnson


Tim Roth como o governador Wallace


A diretora Ava DuVernay


Realidade e ficção. Mais um belo trabalho de caracterização.




Nenhum comentário:

Postar um comentário