segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Resenha de Filme - Deus e o Diabo na Terra do Sol



Deus E O Diabo Na Terra Do Sol. A Obra Prima de Glauber Rocha.
O filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) pode ser considerado a obra prima de Glauber Rocha. E por que podemos afirmar isso? Por que o filme se encontra a meio caminho daquilo que podemos chamar de um cinema mais convencional, com um roteiro estruturado que simplesmente conta uma história com um fio narrativo de fácil compreensão (como Glauber havia feito em “Barravento”) e um cinema mais experimental, que marcaria a carreira de Glauber posteriormente, tornando seus filmes mais herméticos e de difícil entendimento. A grande marca de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” são as falas dos personagens, cheias de reflexões e conflitos sobre as condições sociais de um Nordeste inóspito e violento e de como eles, personagens, se enquadram ou deixam de se enquadrar nessas condições.
A trama conta a história do casal Manuel (interpretado por Geraldo Del Rey) e Rosa (interpretada por uma jovem e lindíssima Yoná Magalhães). Eles vivem no seco e miserável sertão nordestino, trabalhando numa terra estéril, vivendo de forma extremamente precária. Manuel transportará umas cabeças de gado dele e do coronel Morais (interpretado por Antônio Pinto) para a fazenda do latifundiário. A intenção de Manuel é vender suas cabeças de gado ao coronel para comprar um pedaço de terra. Mas algumas cabeças morrem de sede na viagem. O coronel é taxativo e diz que as cabeças que morreram foram as de Manuel, que precisava delas desesperadamente. Manuel questiona o coronel, que o trata com truculência. O sertanejo, revoltado e desesperado, mata o coronel e seus jagunços que haviam assassinado sua mãe. Temendo a perseguição dos poderosos, Manuel e Rosa fogem e se integram ao grupo do beato Sebastião (interpretado por Lídio Silva), uma espécie de alter ego de Antônio Conselheiro, em Monte Santo. O discurso de Sebastião é sedutor. Ele diz que os pobres terão um futuro de terras férteis e muita comida se eles se aproximarem de Deus e que os menos favorecidos serão contemplados e protegidos por Deus contra os poderosos. Mas, aos poucos, vemos que Sebastião é um fanático religioso extremamente autoritário que aliena o povo, sendo Manuel uma de suas principais vítimas. Quem não obedece as determinações do beato é tratado com violência, através de espancamentos severos e pesadas penitências. Rosa quer tirar o marido daquele grupo de religiosos, mas ele não lhe dá ouvidos. Sebastião diz que Rosa está possuída pelo demônio e ela somente poderá ser purificada com o sangue de um inocente. Sebastião sacrificará uma criança pequena para usar seu sangue para tirar os pecados de Rosa. Manuel surta com a cena e Rosa, aproveitando-se de um descuido de Sebastião, o mata a facadas.
Outro personagem do filme é Antônio das Mortes (interpretado por Maurício do Valle), um matador de aluguel, especializado em executar cangaceiros, mas que é contratado pelos coronéis locais e pela Igreja para liquidar o grupo de Sebastião, pois seus seguidores deixam de frequentar a Igreja católica e de trabalhar para os coronéis (novamente a alusão a Canudos). Antônio das Mortes questiona tal serviço, pois ouviu falar que Sebastião é um bom líder religioso e se preocupa com o povo. Mas a oferta dos coronéis de trezentos contos de réis e da Igreja de seiscentos contos de réis faz com que ele aceite a proposta. Ele executará todos os fiéis numa cena que, reza a lenda, foi uma homenagem de Glauber à cena da escadaria de Odessa, do filme “O Encouraçado Potemkim”, do russo Sergei Eisenstein, onde o povo é massacrado por tropas do Czar. Antônio das Mortes encontra Sebastião morto, Manuel e Rosa em estado de choque e conclui que o próprio povo matou o beato, deixando-os para trás. Mais tarde, Manuel e Rosa encontram o bando do cangaceiro Corisco (interpretado de forma magistral por Othon Bastos) e Dadá (interpretada pela bela Sônia dos Humildes). Corisco aqui é um cangaceiro visto de uma forma bem romântica, como o justiceiro do sertão que quer libertar o povo da exploração do governo e dos poderosos. Com monólogos muito intensos, Corisco lembra da aniquilação do bando de Lampião e de como o governo oprime o povo. O heroísmo de Corisco só não é menor do que sua violência gratuita, onde ele tortura e mata o filho de um coronel inimigo. Manuel, já integrado ao bando de Corisco com o codinome Satanás, quer fazer justiça, mas não suporta a violência gratuita de Corisco, atitude que faz o próprio cangaceiro refletir sobre seu estilo de vida violento e de como ele se encontra interiormente despedaçado por estar tão contaminado pela agressividade. Curioso também é notar a aproximação entre Rosa e Dadá, numa leve insinuação ao homossexualismo, tema carregado de pesados tabus há cinquenta anos. O envolvimento entre Rosa e Corisco também é digno de atenção. Os monólogos e reflexões em ritmo lento serão substituídos ao final da trama por um tiroteio entre Antônio das Mortes e Corisco, onde reza a lenda que Glauber fez essa sequência inspirado nos westerns de John Ford. Ferido mortalmente por Antônio das Mortes, Corisco dá seu último grito romântico: “Mais fortes são os poderes do povo!”. Manuel e Rosa correm sem rumo pelo sertão que vira mar na cena final de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.
Esse filme é uma das joias principais e carros chefes do cinema novo. Questão social e flagelo da seca nordestina denunciados, a religião como fanatismo, bem ao estilo da cartilha marxista, alusões a momentos da História do Brasil como a guerra de Canudos e o movimento do cangaço, a belíssima trilha sonora que contém Villa Lobos, dando um tom épico a uma tragédia social, mesclado com músicas num estilo bem nordestino, especialmente compostas para o filme, que narram a história, da mesma forma como foi visto no western “Rancho Notorious”, de Fritz Lang. Só que aqui, as letras são compostas pelo próprio Glauber e por Sérgio Ricardo.
Mas as pérolas principais se chamam Corisco e Antônio das Mortes. Os monólogos de Corisco são algo especial, embora o próprio Othon Bastos tenha achado que ficou uma merda. Os dilemas do cangaceiro ao expressar suas altas doses de violência, o tom nostálgico sobre a figura de Lampião, a visão de si mesmo como um defensor do povo contra o monstro do sistema, tudo isso dito de forma firme, com um olhar penetrante em close do ator perante o espectador, tornaram essa atuação de Othon Bastos algo antológico. Antônio das Mortes é um personagem ainda mais interessante, pois é um matador a serviço do sistema que questiona as mortes que lhes são encomendadas. Ele mata de forma impiedosa e é atormentado pelas próprias mortes que provoca. Isso pode ser visto num filme de Glauber feito exclusivamente para o personagem Antônio das Mortes, que foi “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”. Ambos os personagens – Corisco e Antônio das Mortes – são contraditórios. O cangaceiro luta contra as injustiças de forma muito dura, mas se arrepende de uma certa forma de ter perdido sua ternura. Já o matador é seduzido pelo dinheiro e pelo que ele tem que fazer, que é matar, mas questiona as mortes que provoca. Essas são as duas joias principais na coroa de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Definitivamente, esse filme é uma obra prima de Glauber, que ganhou vários prêmios: Prêmio da Crítica Mexicana no Festival de Acapulco, o Grande Prêmio do Festival de Cinema Livre da Itália, a Náiade de Ouro do Festival Internacional de Porreta Terme da Itália e o Grande Prêmio Latino Americano do Festival de Mar del Plata, Argentina. O ator Maurício do Valle ganhou o Troféu Saci de melhor ator coadjuvante. Referência obrigatória na videoteca de qualquer cinéfilo...


Cartaz Antológico do Filme


Rosa e Manuel. Dois perdidos no flagelo da seca


Sebastião. Fanatismo religioso.


Penitências literalmente pesadas.


Manuel cada vez mais distante de Rosa.


Rosa como o Demônio!!!


Surge Corisco!!!!


Cangaceiro de olhar penetrante.


Antônio das Mortes. Maior personagem de Glauber.



Antônio das Mortes. Matador atormentado.


Dadá, interpretada pela bela Sônia dos Humildes.


Manuel. Conflito entre Deus e o Diabo.


Mais fortes são os poderes do povo!!!!


Glauber em ação!!!!


Grande cena! Scorsese e o poster do clássico de Glauber!!!

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