terça-feira, 24 de junho de 2014

Resenha de Filme - Cães Errantes

Cães Errantes. Degradação Da Condição Humana.
O filme chinês “Cães Errantes”, de 2013, aborda um tema já muito discutido em cinema: a miséria nos grandes centros urbanos. Mas, como toda obra reflete uma interação entre paráfrase e polissemia, ou seja, entre o já dito e o ainda não dito, podemos aqui identificar uma série de peculiaridades. Vamos falar um pouco delas aqui.
A história conta a vida de uma família em Taipé, capital de Formosa, China Nacionalista e capitalista. A mãe abandona pai e um casal de filhos pequenos. O pai tem o emprego de segurar cartazes anunciando a venda de apartamentos de luxo, ficando o dia inteiro em pé na rua, suportando frio, fortes ventos e chuvas. Suas paradas para almoço ocorrem em locais ao ar livre como em terrenos baldios abandonados e no alto de viadutos. As crianças, agora sem mãe, perambulam pelos supermercados para comer amostras grátis de produtos. À noite, essa família totalmente miserável faz sua higiene em banheiros públicos e dorme num prédio abandonado. Tudo isso é contado em longuíssimos planos onde a ação se esgota totalmente. A primeira impressão é a de que o filme é muito maçante e demorado (tem 135 minutos), mas os longos planos podem ter a intenção de amplificar o estado de miséria e desalento dessa família que apenas sobrevive e vai vivendo um dia após o outro, sem qualquer perspectiva de futuro a um prazo maior. O que importa é conquistar o dinheiro de cada dia, a quentinha de cada dia, a amostra grátis de cada dia. Volta e meia, existe um pouco mais de ação, como no canto choroso do pai ao segurar o cartaz debaixo de chuva e vento, canto esse que remete a guerras ancestrais de seu povo e a dor da derrota, situação análoga a que ele passa em sua vida real. As cenas onde o pai come são também marcantes, principalmente pela sua repugnância, onde vemos o homem devorando pedaços de frango e outras comidas, no único momento onde ele ainda tem alguma espécie de prazer em sua vida. O filme também tem momentos lúdicos, onde a filhinha da família consegue um repolho e faz uma boneca com ele para deitar na cama onde todos dormem, numa tentativa de se restaurar a figura materna. O pai, ao presenciar aquela boneca, lembra-se da esposa que fugiu e começa a raivosamente devorar o repolho para depois se debulhar em lágrimas, em um dos momentos mais dramáticos do filme onde todo seu sofrimento se expressa violentamente.
Mas há um outro elemento a ainda ser acrescentado. Uma mulher que trabalha no supermercado onde as crianças perambulam, é a responsável por verificar o estado de conservação dos alimentos perecíveis. Um dia, ele sente um mau cheiro perto de um dos freezers. Examina todos os alimentos e chega à conclusão que o mau cheiro vem da menininha dessa família pobre que está ali perto. Tomada de pena, a mulher leva a garota para o banheiro, dando-lhe um banho improvisado. Curiosamente, a mulher mora no mesmo prédio abandonado, numa indicação que não somente os subempregados vivem em condições degradantes. Pessoas com empregos um pouco melhores também não conseguem coisa melhor para viver. Essa mulher irá acompanhar essa família à distância, mas ela fará uma intervenção ao perceber que o pai irá se matar e aos seus filhos ao colocá-los num barco dentro de um rio, numa noite chuvosa. A mulher pega as crianças e leva ao seu apartamento, seguida pelo pai. Uma vida nova começa para essa família graças a essa mulher. A vida fica mais confortável (o apartamento tem um banheiro, geladeira com comida, etc.), a mulher faz uma festa de aniversário para o pai que assiste, atônito, a tudo aquilo (como se ele não tivesse uma festa de aniversário há muito tempo, ou talvez nunca tivesse), a menininha finalmente pode dormir com uma figura materna novamente. O desfecho do filme faz-se num longo plano silencioso onde pai tenta se aproximar afetivamente da mulher. Não há um diálogo sequer. As lágrimas dizem tudo. Tudo isso feito perante uma imensa e bela paisagem pintada nas paredes do prédio abandonado, uma espécie de alegoria de um futuro melhor e de mais esperança, maltratada pelas más condições do lugar. Essa paisagem age de forma hipnótica em nossos personagens também em outros momentos do filme, a ponto de a mulher até urinar em sua presença somente para continuar ali.

Dessa forma, “Cães Errantes”, apesar de ser muito longo e maçante, é um filme que enfoca questões profundas da condição humana como falta de futuro, solidão, desalento, motivadas pelo jeito impiedoso que um sistema exploratório achaca as pessoas. A pouca presença de diálogos e os longos planos altamente expressivos são sua característica principal, onde a ação se esgota, mas explica todo o contexto enquanto ela perdura. Tenha paciência e dê uma conferida.

 Cartaz do filme. Paisagem mítica, que reflete uma esperança longínqua, no meio da degradação total.


Família jantando na rua.


Durante o dia, cartaz humano sujeito às intempéries.


Choros e canções ancestrais.


Mãe que abandona a família.


Devorando um repolho. Momento mais dramático. Dor pela perda da mulher.


Mulher do supermercado salva crianças do desespero do pai.


Festa de aniversário e estranhamento.


Sequência final. Imagens dizem tudo

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