sábado, 15 de fevereiro de 2014

Resenha de Filme - Harakiri

Harakiri: As Dissimulações de Honras.
O filme “Harakiri”, de Masaki Kobayashi produzido em 1962, nos leva ao Japão do século XVII durante o xogunato, uma forma de governo onde o Imperador delegava seus poderes a um comandante militar que tinha como objetivo “apaziguar” os bárbaros. A sociedade japonesa era composta de várias famílias, sendo que algumas delas tinham o poder do xogunato e outras não. Volta e meia, o xogum aniquilava algumas dessas famílias feudais.
Esse é o contexto de nossa história. Vemos aqui o clã Iyi, que recebe as visitas de samurais (soldados dessas famílias) do clã Fukushima. Esse clã havia sido aniquilado pelo xogunato e seus samurais ficaram sem qualquer amparo. Os tempos de guerra haviam terminado e os samurais antigo clã Fukushima estavam na pobreza total. Assim, eles procuravam outras famílias para poderem cometer o harakiri, ou seja, o suicídio, fazendo um corte em forma de cruz na barriga. As famílias então, sensibilizadas com o desespero, davam algum dinheiro para os pobres coitados e os mandavam embora. O problema é que alguns samurais passaram a fazer isso só pelo dinheiro e o clã Iyi decidiu que todo samurai que o procurasse pedindo o harakiri deveria fazê-lo de qualquer jeito. Assim, um samurai de nome Chijiiwa foi obrigado a enfiar sua espada em seu ventre, embora ele tenha pedido um dia ou dois de prazo antes de cometer o suicídio, algo que foi negado pelo conselheiro da casa de Iyi. Ainda, Chijiiwa foi bastante humilhado, pois sua espada era de bambu e não de aço, e o suicídio com ela era altamente desonroso para o samurai. O clã Iyi obrigou o Chijiiwa a cometer o suicídio com sua espada de bambu. Para o samurai, sua espada é o símbolo máximo de sua honra. Então imaginem a humilhação em ser morto com uma espada de bambu ao invés de aço.
Mas a história teria ainda um novo elemento. Outro samurai, de nome Tsugumo aparece algum tempo depois para cometer o mesmo harakiri. O conselheiro de Iyi o alertou para a história de Chijiiwa, mas mesmo assim, Tsugumo queria cumprir o ritual. Entretanto, Tsugumo pediu para que seu auxiliar (ou seja, o espadachim que iria decapitá-lo após ele enfiar a espada em seu ventre) fosse um dos três membros da casa de Iyi que não estavam presentes por estarem supostamente doentes. Assim, um espadachim escolhido pelo conselheiro cumpriria a função da decapitação. Mas Tsugumo convence o conselheiro a escutar sua história. E assim ficamos sabendo que Chijiiwa era genro de Tsugumo e que ele buscou dar o “golpe” do harakiri, pois encontrava-se em situação de desespero, já que sua esposa e filho estavam muito doentes. Foi por isso que ele pediu mais um dia antes de cometer o suicídio, algo ignorado pela casa de Iyi. Os três espadachins que Tsugumo tinha solicitado haviam humilhado muito Chijiiwa e Tsugumo foi atrás dos três, arrancando o pequeno rabo de cavalo que tinham, outra humilhação insuportável para um samurai. Aliás, deve ser mencionado aqui que a cena da luta entre Tsugumo e o espadachim que mais humilhara Chijiiwa (não o decapitou depois que Chijiiwa cometeu o harakiri) tem enorme plasticidade e carga simbólica pois, antes de haver o combate, os dois atravessaram um cemitério e um bambuzal, alusão direta a Chijiiwa). Para não serem vistos sem o rabo de cavalo, os três espadachins alegaram doença.  Assim, Tsugumo expôs toda a desonra da casa de Iyi, que obrigou Chijiiwa a se matar com a espada de bambu e com os samurais de Iyi derrotados e humilhados por Tsugumo. A casa de Iyi não suportou tal humilhação e cercou Tsugumo com seu exército, restando ao nosso herói cometer o harakiri, não antes sem matar quatro samurais de Iyi e ferir outros oito, além de profanar o altar dos Iyi, que tinha uma armadura de samurai vermelha, devidamente atirada ao chão por Tsugumo. O conselheiro de Iyi, para esconder toda a desonra da casa, deu ordens de espalhar a informação de que Tsugumo morreu de harakiri e que ele estava fora de seu juízo. Já os feridos, além dos três espadachins “escalpelados” por Tsugumo, estavam todos doentes e os mortos haviam sido vitimados por doenças.

O filme mostra elementos muito interessantes da cultura japonesa. Primeiro, o caráter altamente autoritário do xogunato, que durou do século XII ao XIX. O fato de algumas famílias serem aniquiladas pelo xogum causou o surgimento de ex-samurais empobrecidos e humilhados, isso num país onde o conceito de honra é muito forte. Ainda, a prática do harakiri como uma forma de aliviar a desonra foi utilizada por alguns samurais justamente de forma ilícita, ou seja, para arrancar dinheiro de algumas famílias. E, no caso da família de Iyi, para reprimir essa prática desonrosa dos samurais, ela também usou práticas ilícitas como obrigar Chijiiwa a se matar com a espada de bambu e a não decapitá-lo mesmo quando já havia cometido o harakiri, além de praticamente massacrar Tsugumo. Logo, vemos uma interessante contradição: para preservar conceitos de honra, eram utilizadas práticas consideradas desonrosas. Samurais passando contos do vigário para sobreviver e casas feudais humilhando samurais com práticas desonrosas, numa suposta preservação da honra. Como o conceito de honra é algo muito caro ao povo japonês, é muito interessante perceber como esse filme trabalha essas contradições com a honra. Vale lembrar, enfim, o arrependimento de Tsugumo, pois ele não havia vendido suas espadas de aço de samurai para salvar sua filha e seu neto, algo que Chijiiwa fez (por isso que sua espada era de bambu). Tsugumo valorizou mais a honra que a vida de seus entes queridos, mas mostrou um grande remorso depois, ou seja, a vida humana foi colocada acima da honra num momento extremo.

Cartaz do Filme. Forte!!!


Tsugumo


Luta de Tsugumo com os samurais de Iyi.


A armadura sagrada da casa de Iyi


Chijiiwa: expressão melancólica


Harakiri de Chijiiwa: humilhação e desonra de Iyi.


Tsugumo e espadachim de Iyi atravessando cemitério: alusão a Chijiiwa

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