sábado, 7 de fevereiro de 2015

Resenha de Filme - Nostalgia da Luz

Nostalgia Da Luz. Memória, Presente, Passado, Vida E Morte.
Um excelente documentário de 2010. “Nostalgia da Luz” tem como cenário o Deserto de Atacama, no Chile, um local onde nenhum ser vivo tem como habitat natural. É o sítio no planeta Terra que mais se assemelha à superfície de Marte. Um local apenas de passagem, usado por várias civilizações no passado. Patricio Guzmán vai abordar o Deserto do Atacama de hoje, que tem várias presenças do ser humano. Os desertos costumam ter céus bem limpos, altamente propícios para a observação astronômica. Por isso mesmo, vários países europeus instalam telescópios e antenas no deserto para estudar os astros. Próximas aos observatórios há várias pinturas rupestres comprovando a passagem de antigas civilizações indígenas por lá. Logo, o deserto também é um sítio propício para os arqueólogos que, volta e meia, encontram corpos indígenas mumificados de séculos atrás. O clima desértico possibilitou a preservação desses corpos, de forma que alguns estão praticamente intactos e são uma fonte valiosa de pesquisas. Por outro lado, o deserto também tem marcas do horror, pois lá funcionou um campo de concentração construído por ordens de Augusto Pinochet, onde antes existiam os alojamentos dos trabalhadores de uma mineradora. A única coisa que a ditadura chilena fez foi cercar o campo com arame farpado. O Deserto também foi utilizado para sepultar perseguidos políticos mortos pela ditadura em valas clandestinas. Com isso, é possível encontrar pequenos pedaços de ossos de desaparecidos e seus parentes, em sua maioria senhoras já idosas, vagam pelo deserto com pequenas pás em busca de qualquer vestígio de desaparecidos políticos, na esperança de que algum pedaço de seus entes queridos seja achado.
O documentário é extremamente tocante, sobretudo no que concerne às buscas dos desaparecidos políticos. É especialmente dolorosa a passagem de uma mulher que conseguiu achar o pé do irmão no deserto. E mais dolorosa ainda a passagem de uma mulher de 70 anos que ainda não achou qualquer vestígio de seu marido e quer seu corpo inteiro, algo que nem se sabe se irá acontecer, pois o deserto é muito extenso e ouviram-se boatos de que alguns corpos foram lançados ao mar para encobrir esse terrível crime contra a humanidade que ocorreu na ditadura de Pinochet. Algumas imagens de arquivo e em preto e branco da exumação de uma cova coletiva em 1990 são especialmente chocantes, pois as condições do deserto preservaram os corpos e ainda podemos ver o semblante das vítimas na hora da morte. Uma moça ainda estava de batom e com seu rosto, casaco e mãos intactas. Algo que parte o coração. É especialmente terrível o caso de uma astrônoma chilena que foi salva pelos avós, sob o preço de entregar os pais da moça. Se isso não fosse feito, a menina, com pouco tempo de vida, também seria presa e sumiria. O casal de avós, já bem idoso, somente estava lá diante da câmara, impassível, provavelmente com um peso na consciência de ter sido obrigado a entregar os pais da menina para o regime. A menina, por sua vez, disse que estudava astronomia para buscar um significado ao seu sofrimento, pois ela com os ciclos de nascimento e morte das estrelas, podia sentir como a matéria do Universo se reciclava e passou a entender que tal coisa também havia ocorrido com seus pais. Há um registro de que 30000 pessoas tenham sofrido alguma violência por parte do Estado na ditadura chilena, enquanto estima-se que outras 30000 pessoas também tenham sido barbarizadas pelo regime mas não denunciaram por vergonha ou medo.
O documentário também é maravilhoso pela ideia de preservação da memória. Vemos aqui um grande paradoxo no deserto. Enquanto os arqueólogos buscam vestígios de civilizações antigas para reconstruir o Chile pré-colombiano, por outro lado, os desaparecidos políticos foram enterrados lá para serem esquecidos. Uma parte podre da história chilena que foi varrida para debaixo do tapete. É por isso que as senhoras que buscam seus parentes no deserto dizem que se sentem como uma espécie de “lepra” da sociedade, pois a história delas incomoda a muitas pessoas. E a única forma delas não serem apagadas da já fraca memória chilena é continuando a buscar vestígios de ossos no deserto.
Enquanto isso, os astrônomos no alto dos morros observam o Universo e, assim, também investigam o passado. Estrelas longínquas mostram em seus espectros linhas de absorção de cálcio, o mesmo cálcio que está no corpo das pessoas e nos ossos das múmias indígenas ou nos restos dos desaparecidos. Assim, astrônomos, arqueólogos e parentes de desaparecidos estão todos, de certa forma e cada um a seu jeito, comprometidos com o passado e a memória. Essa é a grande beleza desse documentário, que podemos considerar uma verdadeira obra-prima.

Dessa forma, “Nostalgia da Luz” é um programa imperdível e obrigatório. Um documentário, que usa um terreno tão estéril como o deserto para relacionar temas ricos e aparentemente díspares como a Astronomia, a Arqueologia, a História, a Política e a Memória, deve ser aplaudido de pé. Uma reflexão de alto nível. Histórias e depoimentos comoventes. Um grito de denúncia contra as injustiças. Uma joia do cinema tão brilhante como as fotografias das joias que vemos no céu. “Nostalgia da Luz” é para ver, ter, refletir e se emocionar.


Cartaz do filme


Um deserto morto, mas cheio de vida...


Céus límpidos atraem astrônomos de todo o mundo


Propiciando belas imagens do Universo e do passado...











Dolorosa busca por fragmentos de desaparecidos políticos.


De José, somente sobrou seu pé...


A jovem astrônoma só sobreviveu por uma difícil escolha dos avós...


Aulas de astronomia no campo de concentração...


Um sensacional trabalho de Patricio Guzmán

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